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DOENÇA OCUPACIONAL: Exposição a benzeno contamina frentistas gaúchos, aponta pesquisa

DOENÇA OCUPACIONAL: Exposição a benzeno contamina frentistas gaúchos, aponta pesquisa

  • 18/12/2019 13:03:25
Adocicado e agradável, semelhante a um perfume em meio ao cheiro característico da gasolina. O frentista Valdir* descreve assim um inimigo discreto, silencioso e mortífero: o benzeno, substância tóxica e cancerígena presente em combustíveis. Aos 39 anos de idade e há 16 trabalhando em postos, ele nunca havia se preocupado com a exposição diária ao composto. Foi quando uma pneumonia bilateral acendeu o alerta da contaminação.
 
 
A infecção aguda nos dois pulmões foi constatada em 2013 por exames de rotina feitos pela Secretaria de Saúde de Santa Maria. Causada pela bomba de gasolina que manuseava todo dia, exigia tratamento urgente.
 
- Era uma situação muito grave. A médica que me examinou falou que, provavelmente, era por causa da exposição prolongada ao benzeno. Com os exames, ficou provado que eu havia sido envenenado no meu ambiente de trabalho sem nem perceber - conta.
 
Valdir integra um estudo inédito que comprovou alterações no sistema imunológico de frentistas do interior do Rio Grande do Sul provocadas pelo benzeno da gasolina que abastece os veículos. Ao participar da pesquisa, realizada pelo Laboratório de Toxicologia (Latox) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em parceria com o Departamento de Química do Centro Técnico Científico da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), descobriu que poderia desenvolver câncer.
O trabalho foi iniciado há cerca de dois anos, sendo a maioria das amostras de sangue e urina coletada em Santa Maria e Santa Cruz Sul. Quase 70 frentistas fumantes e não fumantes foram submetidos aos exames, além de 28 trabalhadores que não são frentistas e não fumam, formando um grupo de controle.
 
No estudo, foi comprovado que a substância pode provocar anemia e favorece o desenvolvimento de leucemia. Os pesquisadores identificaram danos às proteínas, aos lipídios e ao DNA de trabalhadores de postos de gasolina no Estado. Ao afetar diretamente a imunidade do corpo humano, a intoxicação provoca sintomas leves, que escondem problemas mais sérios. Por isso, Valdir descobriu quase por acaso.
 
- Alguns anos depois que comecei a trabalhar como frentista, notei que minha imunidade caiu muito. Era gripe toda hora, dores musculares, dor de cabeça frequente, tonturas. Tive problemas renais, de audição. Hoje sei que é pelo benzeno, que me acompanhou durante boa parte da vida. Poderia ter morrido - diz.
 
A substância cancerígena dá sinais quase imperceptíveis até mesmo para quem recém ingressou na profissão. Maristela*, de 28 anos, não chegou a participar da pesquisa pois trabalha há apenas seis meses como frentista. No entanto, diz que já sente alguns efeitos da exposição. Abastece veículos sem luvas, sem máscara, apenas com um óculos para proteger os olhos de eventuais respingos.
 
- Tenho muita dor de cabeça. E percebo que é bem mais frequente agora. Ânsia de vômito, tonturas. Sinto quando vou abastecer um carro. Parece que desce queimando pela garganta, sabe? Os motoristas pedem para encher "até as guela" e a gente vê direitinho o vapor saindo do tanque - relata.
 
Abastecer até a boca do tanque aumenta riscos
 
Encher o tanque até o máximo possível é perigoso, pois aumenta ainda mais a exposição ao benzeno. De acordo com a cientista Adriana Gioda, da PUC-RJ, uma das autoras do estudo, pesquisas já comprovaram os malefícios da prática.
 
- O nosso estudo não foi direcionado para isso, mas existem outras pesquisas e comprovação científica de que a exposição a benzeno é de três a quatro vezes maior quando o motorista pede para abastecer além do travamento automático da bomba. Isso é uma coisa super importante para conscientização dos motoristas - afirma Adriana.
 
O deputado estadual Carlos Minc (PT-RJ), ex-ministro do Meio Ambiente, também destaca o mesmo problema, que foi constatado em uma medição feita em um posto de gasolina no Rio de Janeiro, estado onde, desde o início do ano, os frentistas estão proibidos por lei de abastecer qualquer veículo além do travamento automático da bomba.
 
Quem descumprir a norma está sujeito a uma multa de cerca de R$ 13,5 mil. Em caso de reincidência, o valor dobra. Segundo o Sindicato dos Empregados em Postos de Serviços de Combustíveis e Derivados de Petróleo do Rio de Janeiro (Sinpospetro-RJ), até o momento nenhum posto de gasolina foi responsabilizado, por se tratar de uma legislação recente e com fiscalização precária.
 
- Sabemos, há muito tempo, dos graves problemas à saúde. Os motoristas já deveriam entender que estão intoxicando milhares de pessoas com esta atitude - sustenta Minc que, no ano passado, lançou a campanha nacional #PareNoAutomático.
 
No Rio Grande do Sul, não há qualquer campanha pública direcionada para o problema - nos postos gaúchos, é praxe ultrapassar o travamento. Existem algumas tratativas, conforme informaram representantes da Secretaria Estadual da Saúde, mas um plano só deverá ser lançado no fim do ano.
O auditor-fiscal do Trabalho da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Rio Grande do Sul (SRTE-RS) Luiz Alfredo Scienza, que atua no setor de segurança e saúde do trabalhador, destaca duas medidas de prevenção que deveriam ser adotadas diariamente nos postos de gasolina. A primeira é que os frentistas deixem de usar, no abastecimento, o habitual "paninho", que fica impregnado de compostos perigosos. A outra precisa da colaboração dos motoristas: parar o abastecimento quando a bomba tranca.
 
- Se você não pede um "chorinho", não deixa ultrapassar o sensor automático, já ajuda a reduzir a proximidade do rosto do trabalhador da área de maior concentração de vapores de benzeno - ressalta.
 
Uso de equipamentos de proteção é raro
 
No caso de Jair*, o benzeno é um inimigo de longa data. Ele passou metade de seus 68 anos atendendo em postos de gasolina sem qualquer proteção no corpo, pela força do hábito. Jair ficou sabendo da pesquisa pela reportagem e admitiu que nunca se preocupou em fazer exames específicos para saber se está contaminado, como os frentistas que se submetaram ao estudo e acusaram a intoxicação. O descaso com a própria saúde é uma postura que acompanha boa parte dos funcionários desse setor.
 
- A gente sente o gás e sabe que é um inimigo presente nas nossas vidas. Arde os olhos, dá dor no estômago. De manhã, quando eu meço o tanque que chega com combustível, pega até na pele do cara. Temos máscara, óculos, luvas, creme. Mas como o cara vai usar uma máscara e falar com o cliente? - questiona.
 
Apesar de ser um dos integrantes da pesquisa, Artur* não teve retorno dos resultados e descobriu, a partir de outros exames, que o benzeno não está no seu organismo. Mesmo assim, quase 15 anos mais jovem que Valdir, ele também compartilha, aos 25 anos, o mesmo medo que acompanha a maioria dos trabalhadores da categoria. Palavras como câncer e leucemia entraram nas conversas entre colegas de profissão.
 
- Todo mundo que trabalha na área tem esse medo. O cara não sabe Pode surgir um câncer. Qualquer coisa pode acontecer. Então o cara fica sempre com aquele pezinho atrás, aquele medo, né? Tu sabe que o risco existe, mas os caras (empregadores) não te dão suporte - salienta Artur.
 
Segundo relatos de frentistas à pesquisa, são raras as menções aos perigos do benzeno nos postos. O descaso chegou às pesquisadoras, que contam terem sido impedidas de aplicar o trabalho científico em alguns estabelecimentos.
 
Conforme Solange Garcia, toxicologista do Latox e autora do estudo, vários postos de combustíveis consultados se negaram a participar do projeto - por isso a pesquisa foi feita no interior do Estado.
 
- Quando tentamos em Porto Alegre, a resposta foi "não". Este setor é muito complicado - ressalta.
 
Segundo Artur, os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) são obrigatórios na rotina diária de trabalho, mas os administradores não fiscalizam o uso correto deles.
 
- Tem certos postos que o cara trabalha que não tem luva, não tem óculos. As pessoas vão trabalhar de tênis, calçados impróprios para o serviço. O pessoal que descarrega, que analisa o combustível que chega, não usa máscaras. Os patrões não cobram, não se preocupam.
 
Ângelo Martins, presidente do Sindicato dos Trabalhadores no Comércio de Minérios e Derivados de Petróleo no Estado do Rio Grande do Sul (Sitramico-RS), diz que é importante conscientizar frentistas e clientes.
 
- Acredito que é um problema de cultura. Temos de elaborar uma grande campanha, como ocorre em outros Estados - projeta Martins.
 
De outro lado, na área da pesquisa, surge o argumento de Maria Juliana de Moura Correa, da Secretaria Municipal da Saúde de Porto Alegre. Ela discute a banalização dos riscos.
 
- Ainda há muito desconhecimento. As pessoas não têm ideia de que o câncer ou a doença surgiu da exposição ao benzeno, por exemplo - sustenta Juliana.
 
O médico Danilo Fernandes Costa, ligado à Universidade Federal de São Paulo (USP), autor de uma tese de doutorado sobre o tema, amplia o alerta. Outros solventes, além do benzeno, podem causar danos ao sistema nervoso central, doenças hepáticas e renais. Em casos mais graves, cânceres relacionados ao sistema sanguíneo: linfoma, leucemia, mieloma múltiplo.
 
Fiscalização atual é deficiente, reconhece auditor
 
No Brasil, a concentração de benzeno não deve passar de 1% em misturas líquidas (gasolina) e 2,5 partes por milhão (ppm) do ar. Pelo menos duas normativas do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) - a NR 7 e NR 9 - foram estabelecidas para trabalhadores expostos a agentes químicos, como o benzeno. Outras duas - NR 10 e NR 20 - também são importantes para evitar acidentes de trabalho.
 
O auditor-fiscal do Trabalho Luiz Scienza sustenta que o ideal seria um setor com dose zero de benzeno, mas reconhece que o atual estágio da tecnologia empregada nos postos de combustíveis não permite a redução. Segundo ele, existem diversos instrumentos simples que podem ser utilizados para minimizar o contato com a substância.
 
- Os mais efetivos requerem investimentos para a redução da exposição. Exemplar é a instalação de sistemas de medição eletrônica dos níveis (estoque) nos tanques subterrâneos, abolindo a aferição por meio de régua ou similar. Outro exemplo é o uso somente de bombas eletrônicas com bicos de enchimento automáticos. O uso de mangueiras, por sucção oral, para transferência de gasolina para recipientes, deve ser terminantemente proibido - diz
 
Conforme Scienza, a contaminação por benzeno é um processo lento e difícil de ser identificado. Há casos de benzenismo, doença provocada pela exposição, em outros setores, mas ainda dentro da área de derivados do petróleo.
 
- O processo de adoecimento pelo benzeno é lento, insidioso e muitas vezes com respostas inespecíficas. Dificilmente as alterações da saúde dos trabalhadores são reportadas com o nexo com o trabalho. Aqui no Rio Grande do Sul temos casos concretos de benzenismo, reconhecidos inclusive pelo poder judiciário, para motoristas que transportam derivados de petróleo, como a gasolina - explica.
 
O auditor admite os problemas de fiscalização e argumenta que a área de segurança e saúde do trabalhador foi uma das que mais perdeu força estrutural dentro do MTE.
 
- Realizamos ações específicas para a área, mas infelizmente as atividades foram minimizadas ao longo dos anos. Perdemos muitos auditores e a demanda aumentou muito. O MTE vive um processo de desestruturação planejada de sua área de segurança e saúde no trabalho, condição que provoca atrasos moralmente injustificáveis nas ações que combatem o adoecimento e o acidente de trabalho.
 
O que dizem os postos
 
O Sindicato Intermunicipal do Comércio Varejista de Combustíveis e Lubrificantes do Estado do Rio Grande do Sul (Sulpetro) disse que não teve acesso ao estudo e que não vai se manifestar sobre as negativas dos postos ou sobre a saúde dos trabalhadores.
 
*Os nomes dos frentistas entrevistados foram alterados para proteger os trabalhadores de eventuais retaliações.
 
Fonte: Zero Hora
 
Imagem para compartilhamento: Freepik
 
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